Turquia é o único país onde sobrevive o Islão político – Ece Temelkuran

Redação, 14 ago 2021 (Lusa) — A Turquia é o único país onde ainda sobrevive o projeto do Islão político e o Presidente Recep Tayyip Erdogan constitui o seu último expoente, considera em entrevista à Lusa a escritora turca Ece Temelkuran.

“A Turquia é o único castelo que sobrevive a um projeto já morto, designado Islão político. Um projeto fomentado após o 11 de setembro de 2001 [os ataques nos EUA] e por isso Erdogan foi apoiado firmemente pela liderança norte-americana”, defende a jornalista e escritora, que editou recentemente em Portugal o livro “Unidos: 10 escolhas para um agora melhor” (Temas e Debates, 2021, no seguimento de “Como perder um país” (Temas e Debates, 2019).

Na sequência dos ataques nos EUA pela Al-Qaida, a invasão do Afeganistão logo em finais de 2001 e do Iraque na primavera de 2003, Washington considerou “que podiam derrotar o designado terrorismo islâmico através da democratização do Islão, um Islão suave…”, sustenta.

“Mas em todo o mundo muçulmano, esse projeto fracassou e os Estados Unidos deixaram de apoiá-lo”, acrescenta.

Ece Temelkuran define Erdogan como “o último homem que mantém de pé esse projeto” e continua a convidar para o seu país “pessoas do Afeganistão, ou da Síria, que o apoiam”, mas num contexto interno que lhe começa a ser muito desfavorável.

“Sabe muito bem que as sondagens de opinião já não o apoiam. O seu apoio no país decaiu de 50% para 26% e necessita de pessoas que votem nele. Por isso convida esses islamitas radicais, sírios, para a Turquia, e atualmente existe um grande problema no país relacionado com a política de imigração, de refugiados”, assegura.

Jornalista e escritora, com 48 anos, Ece Temelkuran deixou a Turquia em 2016, pouco após a fracassada tentativa de golpe de Estado em julho, por se confrontar com uma “ambivalência aterradora”, como indicou.

“Não tinha a certeza se iam perseguir-me ou não. Viver nesse limbo era insuportável e de facto não decidi deixar a Turquia, vim a Zagreb, dormi aqui uma noite de disse que ira ficar e não voltar… o receio de acordar a bateram-me à porta durante a noite. Após a tentativa de golpe de Estado, tornou-se evidente que o regime se iria tornar mais repressivo”, considera.

Antes, tinha trabalhado dez anos no diário Milliyet mas em 2012 foi afastada do jornalismo “devido aos comentários políticos” que escreveu, mais tarde num outro periódico em que analisava em particular a questão curda, mas acabou por se concentrar no mundo dos livros.

Apesar de afastada fisicamente do seu país, continua a seguir de perto a evolução da situação interna, crescentemente complexa.

“Erdogan está no poder há 20 anos e criou uma grande rede financeira digital, e não é apenas um pequeno círculo de pessoas que estão a financiar o Estado, mas ainda uma grande ‘web’ que alimenta as pessoas que apoiam o seu Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP)”, afirma.

Uma explicação que pode não ser suficiente para a perenidade do AKP, como reconhece, mas admite que esta rede continua muito eficaz para o círculo próximo do Presidente turco, e do seu partido.

“Sabem que se Erdogan sair, também saem com ele”, defende.

Na sua atividade de repórter, recorda ter-se deslocado ao Líbano em 2006 logo após os bombardeamentos israelitas, e de se ter deparado em Beirute, no bairro considerado o bastião xiita do Hezbollah, com grandes painéis publicitários.

“Tinham a cara de Erdogan e a frase ‘Aqui está o homem’. Erdogan discursava então contra Israel, apoiava o Líbano…”, recorda.

Uma referência que acabou por se desgastar, mesmo que durante um largo período a Turquia de Erdogan fosse apontada como a grande defensora dos povos árabes e muçulmanos durante longo tempo oprimidos.

“Erdogan era o homem da rua árabe, também estive em reportagem no Egito, na praça Tahrir, mas quase tudo desapareceu”, assinala, sem deixar de denotar uma situação paradoxal.

“Mesmo antes de Obama sair do poder já se sabia que Erdogan era um líder opressor, mas não se importava. Por alguma razão [Erdogan] tentou criar um romanticismo em torno do império otomano, o que é inacreditável em particular para a população árabe, porque sofreram sob o império otomano… Mas de alguma forma reescreveu a história. Vivi na Tunísia, Egito, Beirute, tive a hipótese de observar como aconteceu esta mudança, quer na Turquia quer em termos da perceção internacional sobre Erdogan”, sustenta.

A escritora frisa que a Turquia antes de Erdogan não poderia ser considerado um país democrático, entre outros motivos pelo decisivo peso da hierarquia militar na política, e na economia, e a enorme subserviência face à instituição, incluindo no meio jornalístico.

“Não era democrático, mas possuíamos instituições com capacidade para produzir um regime democrático. Essas instituições foram hoje eliminadas da história da Turquia, e é esse o problema”, argumenta.

“Sabíamos quem era bom e quem era mau, mas Erdogan e o AKP alteraram toda a narrativa. Afirmaram-se como os verdadeiros democratas, e quem não os apoiasse não era democrata de todo. Essa narrativa também se instalou de forma firme entre pessoas progressistas, e foi quando a situação se começou a complicar muitíssimo. Foi um longo processo…”, diz.

O futuro da Turquia, a sua evolução política, são temas prementes para a jornalista e escritora, em particular quando lhe pedem para perspetivar o futuro.

“Em outros países, quando se pergunta aos escritores para perspetivar o futuro, têm receio de confundir as suas previsões com expectativas. Sou turca, confundo sobretudo as minhas previsões com os meus medos. Porque sei como Erdogan chegou ao poder, como tem mantido o poder, e tenho muito receio que não abandone o poder por meios democráticos”, destaca.

E recorda um dos primeiros sinais: “Durante a rebelião de Gezi [os protestos na primavera de 2013 em Istambul e que alastraram a outras cidades turcas], vimos que é um regime impiedoso, que não há limites para a sua brutalidade”.

Na aproximação do centenário da fundação da República da Turquia por Musfafa Kemal (1923-2023), Ece Temelkuran mantém a sua fé, a capacidade para mudar o mundo.

“No 100.º aniversário da Turquia gostaria de ver um regime que abrangesse todas as cores do meu país, porque são cores bonitas. Mas há muita gente que já está de luto por um país que vão perder. E isso é confrangedor. Precisamos de entusiasmo, senão morremos todos por dentro”, conclui.

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