Teatro do Vestido reflete sobre a “orfandade” do pós-25 de Abril

Lisboa, 02 nov 2025 (Lusa) — O Teatro do Vestido pousa uma lente sobre o Processo Revolucionário Em Curso (PREC), período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974, para refletir sobre “um certo sentimento de orfandade” nas gerações que nasceram depois.

As personagens estão todas sentadas à mesa da memória e começam a convocar “uma série de obras” que apoiaram a criação do espetáculo “Torrente”, para “contar melhor a história” do período revolucionário, explicou à Lusa a diretora artística do Teatro do Vestido, Joana Craveiro, numa pausa de ensaio.

Os excertos de obras escritas por quem viveu o processo revolucionário (Artur Portela, Eduarda Dionísio, Maria Velho da Costa, Olga Gonçalves) são lidos por quem só o pode imaginar. “Nós não estávamos lá”, recordam as personagens, em “cenas de um filme que não foi rodado nunca”.

Nessa “mesa de laboratório” vai decorrer “uma autópsia” ao fim de uma revolução, à “sede de uma espera” que “só se estanca na torrente”, como canta Sérgio Godinho na música “Liberdade”, o “clássico” que dá nome ao espetáculo, com estreia marcada para 08 de novembro, na ZDB 8 Marvila, em Lisboa.

Porém, assinala Joana Craveiro, o espetáculo não está “em consonância” com o título e até é “uma espécie de antitorrente”, menos documental e informativa, mais poética e evocativa.

O PREC foi, simultaneamente, um tempo onde “lutava-se ainda”, mas já “antes da grande tristeza”.

Sem ser “melancólico, nem nostálgico”, o “mosaico de histórias” mostrará “a amargura do final das coisas”, como dizia Eduarda Dionísio, e revelará “um certo sentimento de orfandade que acontece para […] mais do que uma geração no pós-25 de Abril” de 1974, data em que um golpe militar pôs fim a uma ditadura de 48 anos.

Esse golpe inicial foi acompanhado pelo surgimento de um “poder popular”, que até ali ninguém “sabia o que era”, assinala Joana Craveiro, que nasceu depois, mas conheceu e conviveu de perto com muitas pessoas que viveram o PREC.

“Em Portugal, há um movimento a que se assiste a partir do dia 25 de Abril que nem os próprios militares estavam à espera que acontecesse, em que este povo que esteve 48 anos oprimido, que não era supostamente politizado, enfim, de repente descobre-se capaz de articular coisas que deseja para a sua vida e que lhes faltavam antes”, recorda.

A “Torrente” abre-se com a afirmação “Todos os factos relatados são reais, a ficção estava noutro sítio” e é sobre o que acontece a seguir ao 25 de Abril, “quando tudo se começa a deslaçar”, situa dramaturga, encenadora, atriz e documentarista, que se dedica há vários anos à revolução portuguesa.

“Como é que essas gerações lidam com aquilo que aconteceu e que foi tão intenso e de repente algumas coisas não se cumpriram?”, questiona.

Joana Craveiro sabe que “todas as memórias [são] conflituais”, mas isso não a afasta de as trabalhar.

O PREC “não é ensinado nas escolas, nem é ensinado muitas vezes nas famílias”, realça, apontando: “É muito confortável teres um dia só, em que fazes umas comemorações, que depois com o tempo também vão perdendo um bocadinho o seu significado e depois toda a memória do que acontece a seguir se perde.”

Neste contexto, “muitas pessoas não sabem” o que foi o PREC. “Mas tenho a certeza de que qualquer pessoa que tenha vivido o pós-25 de Abril […] vai perceber exatamente do que estamos aqui a falar. Qualquer pessoa, independentemente do que ela possa sentir em relação a isso”, acredita.

Perguntam-lhe muitas vezes se não está “cansada” de trabalhar sobre o 25 de Abril e Joana Craveiro admite até que, 15 anos passados, este possa ser “o último projeto” que dedica à revolução portuguesa, mas continua a destacar que “é um tema inesgotável”, seja em grande plano ou mais ao pormenor.

“Precisamos de uma abordagem artística ao processo revolucionário português para o conseguir estudar, investigar e transmitir”, reivindica.

Com texto da própria Joana Craveiro, “Torrente” poderá ser visto na ZDB 8 Marvila nos dias 08, 09, 10 e 11 de novembro, e ainda este ano também em Coimbra, no Teatro Académico de Gil Vicente nos dias 12 e 13 de dezembro.

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