MANTER, APAGAR OU REESCREVER A HISTÓRIA

Correio da Manhã Canadá

A morte de George Floyd às mãos de um polícia norte-americano reacendeu uma série de debates alusivos à trilogia que dá o título a este editorial. O que começou com a condenação do racismo e da violência policial, rapidamente se fragmentou em diversas subquestões, de consenso mais complicado. É o caso da discussão da remoção de estátuas que, à semelhança do coronavírus, tem sido comum a vários países, incluindo Portugal e o Canadá.

A problemática não é nova, mas teima em voltar, sobretudo em países marcados pelo colonialismo. De um lado, contesta-se a manutenção de estátuas de figuras históricas, por eternizaram a memória de um sofrimento coletivo, esclavagista e segregador. Do outro, defende-se a permanência destas figuras, sob o argumento de que é preciso contextualizá-las à luz do momento em que viveram ou foram erigidas.

A história deve ser contextualizada, não há dúvida disso. Quem viveu antes de nós não sabia o que hoje sabemos e presumir o contrário, esperar outro quadro de valores, é uma miopia. Basta pensarmos no “desconto” que frequentemente damos aos nossos pais e avós, quando tocamos em assuntos de fratura geracional. “Viveu noutra época, nunca vai perceber”, pensamos, desculpando, de certa forma, determinada postura anacrónica. Mas a contextualização, apesar de necessária, não pode legitimar o conformismo ou impedir a revisão do “status quo”. O regresso teimoso da discussão das estátuas é o alerta de que não está resolvida e de que precisa de ser revista.

Por outro lado, a discussão resvala frequentemente na referência a outros obras. “Então vamos começar a destruir monumentos históricos, como as pirâmides do Egito, que foram erigidas por escravos?!”, argumenta quem defende a permanência das estátuas. É importante percebermos que não é a mesma coisa. As estátuas demarcam-se de outros monumentos pela personalização da mensagem. Regra geral, há a intenção de heroicizar a figura representada. A simbologia é diferente e o potencial comunicativo de supremacia é muito maior.

No final de contas, a análise simbólica e caso-a-caso poderá ser uma boa aliada na decisão do que deve ou não deve ficar. Um padre António Vieira rodeado de indígenas infantilizados talvez não seja a melhor ideia, mas isso não significa que não lhe possamos reconhecer um peso e até contributo histórico, tal como o de outras figuras, sem veicular supremacia. Não podemos apagar a história, nem devemos tentar mudá-la com atos de vandalismo. Mas podemos reescrevê-la civicamente, procurando pontes e não cisões.