“Os substitutos” explora relação entre pai e filho para falar de memória e pós-verdade

Lisboa, 28 set 2025 (Lusa) – O romance “Os substitutos”, de Bernardo Carvalho, tem como eixo central uma relação entre pai e filho marcada por sentimentos ambíguos e inversão de papéis, dinâmica que o autor associa à era da “pós-verdade” no contexto político atual.

No seu novo livro, o escritor brasileiro Bernardo Carvalho explora a instabilidade da memória, a ambiguidade moral e as contradições humanas, distanciando-se de narrativas identitárias e discursos ideológicos prontos, porque, na sua opinião, o livro não deve ser um espelho que dá ao leitor aquilo que o confirma, disse, em entrevista à agência Lusa, durante uma passagem por Lisboa.

E é isso que faz em “Os substitutos”, lançado em 2023 e editado este mês em Portugal pela Companhia das Letras, quando põe no centro do enredo um pai instável, que mistura amor e violência, poder e fragilidade, na relação com o filho, mostrando que não há “bons” ou “maus” em termos absolutos.

A história passa-se em plena ditadura militar brasileira e acompanha a viagem que um vendedor de madeira, com ligações obscuras aos militares, faz num bimotor, sobrevoando a floresta amazónica, na companhia do seu filho de onze anos, que não compreende plenamente aquilo a que assiste.

Ainda que o romance dialogue com a própria História do Brasil, denunciando o desmatamento da Amazónia, o tráfico de madeira, a corrupção dos militares e a matança de indígenas, o que pulsa no centro da narrativa é a relação entre pai e filho, com a trajetória do país a surgir como pano de fundo.

Bernardo Carvalho retomou as personagens do pai e do filho do seu romance anterior, “Nove Noites”, para aprofundar a relação entre eles, criando uma inversão de papéis, quando, face à irresponsabilidade da autoridade paterna, o filho assume a posição de referência.

O escritor associa essa dinâmica familiar ao contexto político recente, destacando a ascensão de Bolsonaro e da pós-verdade como fenómenos de subversão de sentidos, em que “o pai, símbolo da lei, passa a representar o crime”.

“É um novo tempo em que os conceitos são todos invertidos, então essa coisa da extrema-direita… Quer dizer, a defesa da democracia, na verdade, é a defesa do fascismo; o Trump defendendo a liberdade de expressão, e na verdade é a defesa da censura. E aí esse negócio começou a ser um pântano de sentidos e, como reagir a isso era muito difícil, eu comecei a ficar muito atormentado”, contou.

A isso juntou-se a vontade de escrever sobre esse pai e esse filho, e o autor percebeu que tinha de dar um passo atrás e sair do presente, que é um “lodaçal”, para se situar na época da ditadura e explorar a partir desse lugar “o mundo da pós-verdade e essas inversões de sentido”.

“Qual é a origem dessa coisa? É a figura do Bolsonaro, do fascista grosseiro, isso aí me impressionou muito. É a figura da autoridade, porém ele representa o crime. É a figura da autoridade totalmente irresponsável, quer dizer, o Brasil elegeu a irresponsabilidade para cuidar de si”.

A partir dessa ideia, criou uma relação de inversão também de papéis de pai e filho: “O pai, que em princípio representa a lei, a autoridade, nesse caso representa o crime, a irresponsabilidade total, o oposto da lei”, e o “filho é obrigado a assumir o papel do pai”.

Durante as viagens de avião, o rapaz refugia-se na leitura obsessiva de um romance de ficção científica — que tem como título “Os substitutos” — sobre um grupo de crianças geniais, mas sem memórias, que viaja numa nave espacial em busca de um planeta com condições de habitabilidade para colonizarem, depois de a vida na Terra se ter tornado inviável.

As duas histórias desenrolam-se em simultâneo – à medida que rapaz lê o livro em voz alta para o pai -, o paralelismo entre o futuro planeta e a Amazónia, torna-se tão evidente, nessa ideia de substituição, como na relação entre o pai e o filho.

O romance vai-se construindo, assim, como uma série de variações sobre a ideia de substituição, com papéis e sentidos alternando capítulo a capítulo, com a ambiguidade entre afeto e violência na relação pai-filho a ocupar um lugar central.

“Ninguém é puro crime”, afirma Bernardo Carvalho, citando uma frase do próprio romance, em referência à ambivalência do pai, para explicar que o que lhe interessa na literatura “não são personagens que são inteiros, no sentido de totalmente delineados”.

Para o escritor, um dos problemas políticos hoje “tem a ver com a leitura da Internet, com a Internet criando um mundo paralelo”, em que “de repente a gente não pode mais lidar com o real, com o outro, no sentido do insuportável, do que te contradiz, do que contraria”.

“Então a Internet é aquela promessa de uma janela para o mundo que na verdade te dá um espelho no qual o mundo é o que você quer que o mundo seja. E isso, eu acho, começou a se reproduzir no leitor de literatura, no leitor de jornal. As pessoas só leem o que elas querem e o que as confirma, o que as reconfirma”.

A Bernardo Carvalho interessa a contradição, assumir que as coisas são complexas e contraditórias e que, da mesma forma que ninguém é totalmente bom ou totalmente mau, também as situações têm dois lados, duas leituras.

A memória desempenha igualmente um papel crucial na obra, com o protagonista a recordar “o que se lembra”, mostrando como a memória “não é a reprodução do passado, nem da realidade”, é instável e fragmentada, construída com pontos cegos e distorções, “tem edição e seleção”.

“Então, eu acho que isso daí tem uma consequência na reparação também. Não estou querendo desautorizar o discurso, o testemunho da vítima, nada disso. Eu acho que isso é fundamental (…), eu só acho que tem complexidades nessa história toda que tem a ver com os desejos da gente. Nós somos seres muito ambíguos, muito complexos. A gente não tem definição absoluta. Nós somos muito mutáveis”, considerou, defendendo, pois, que não existe uma “verdade preto no branco” porque “a verdade tem sempre, no mínimo, dois lados, e essa é a dificuldade da cartilha da moral”.

E é nesse contexto que entra a ficção como um campo de experimentação e de reflexão, um caminho de acesso à verdade pelo lado da complexidade, da ambiguidade, em que não são feitos juízos de valor, dando ao leitor essa liberdade.

“É o espaço, para mim, mais livre e por isso é que é difícil lidar hoje com um mundo que tem um monte de regras, o que pode ser dito e o que não pode. Eu acho que isso aí é muito prejudicial para a literatura, porque é um campo que deveria ser de liberdade absoluta, de procurar coisas que são radioativas, ou não, mas ambíguas, e que são difíceis de dizer de uma maneira direta, mais assertiva”.

Mais do que simples cenário, a Amazónia aparece no romance como uma personagem simbólica, ligada à colonização, à destruição e à memória histórica, pois embora tenha sido considerada terra virgem no passado, estudos arqueológicos já demonstraram a presença de civilizações na região há mais de dez mil anos, explicou.

Para Bernardo Carvalho, a destruição da Amazónia significa destruir uma possibilidade de autoconhecimento, significa uma perda de passado e uma perda de memória coletiva.

“Às vezes, com o último indivíduo, morre um mundo inteiro”, mas “se aquilo ali acabar, não é só um mundo a menos, são vários mundos a menos”.

AL // MAG

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